Considerações sobre o conceito do blog

O objeto primeiro deste blogue é conceituar a natureza da crise econômica, política e social em curso, através da análise do conteúdo intrínseco da negatividade da forma valor, relação social abstrata que se estabelece e se reproduz através da mercadoria e do dinheiro (mercadoria especial e equivalente geral), suas expressões materializadas, bem como a necessidade inadiável de sua superação como instrumento de emancipação humana e contenção dos crimes ecológicos contra a humanidade e o planeta Terra.

Recomendamos a leitura do artigo "Nascimento, vida e morte da forma valor" como forma
de entendimento do conceito do blogue.

quinta-feira, 6 de maio de 2010

A mercadoria



Karl Marx, no Livro I de sua obra "O capital", foi quem primeiro desvendou a natureza constitutiva da mercadoria, fazendo-lhe a crítica como modo de relação social em contraposição aos conceitos incompletos e tendenciosos dos economistas clássicos, dentre eles Adam Smith e David Ricardo. Bebendo na sua valiosa fonte, aqui tecemos alguns comentários sobre a mercadoria, como tentativa simplificada, didática e atualizada na compreensão de sua negatividade social intrínseca, justamente no seu momento de sua agonia mundial, e como modo de confirmação do acerto das críticas mais que centenárias e profundas desse grande pensador da crítica da economia política, mesmo que se possa contestá-lo nos seus conceitos de condução política de oposição, fundada na pretensão de justa distribuição da riqueza abstrata por um Estado pretensamente proletário, e na pretensa força da união da classe trabalhadora, aspectos que se revelaram pífios, como modo de superação do capitalismo.

As sociedades mundiais, hoje, vivem sob a égide de uma relação social abstrata, que se materializa através de algo que simultaneamente tem valor de uso e valor de troca – a mercadoria. Tal fenômeno, que a primeira vista parece inofensivo e até benéfico para a humanidade, de tão comum e usual, parece-nos como algo natural, supra-histórico. Entretanto, nada é como pode parecer, e se não quisermos nos deter na análise mais profunda do que seja esse estranho fenômeno social denominado mercadoria, como modo de conhecermos a sua negatividade intrínseca, basta nos debruçarmos sobre a trajetória histórica de guerras e genocídios sem precedentes das sociedades regidas sob o seu império, completada com o quadro atual de miséria global, catástrofes, irracionais agressões ao meio ambiente, extremismos religiosos, genocídios, e a vertiginosa decadência dos chamados países ricos. Nada podia ser diferente do que é, posto que, a mercadoria é o instrumento negativamente hábil à subtração da riqueza produzida por todos em obediência a uma lógica cumulativa predatória que apenas circunstancialmente beneficia os detentores do capital por ela produzido, em face do processo de sua indispensável lógica segregacionista e predadora da vida social, e que ora atinge o seu ponto de limite interno de reprodução, colocando a humanidade perplexa diante da sua própria realidade.

Para que se promova a superação da mercadoria e da vida mercantil, faz-se indispensável que se conheça a sua essência constitutiva e os mecanismos que a tornam uma relação social negativa. A quantificação numérica de um objeto qualquer que serve à satisfação de necessidades humanas, somente se torna necessária em razão da existência de um processo de sua troca por outros objetos de qualidades e quantidades diversas, no mercado. Essa quantificação numérica, algo puramente abstrato e convencional, é capaz de igualar abstratamente e matematicamente quantidades e qualidades de diferentes objetos e, assim, possibilitar as suas trocas através da convenção aceita por todos e que tem como substrato e critério - o tempo médio de esforço necessário despendido pelo ser humano para a produção desses mesmos objetos. Tal tempo de esforço humano pode ser mensurado quantitativamente e numericamente pelo mesmo critério abstrato, sendo considerado, também, uma mercadoria específica, e passando a se constituir como uma categoria fundamental para a existência concreta e abstrata das mercadorias em geral. A categoria mercadológica trabalho é, portanto, um ente do universo concreto (valor de uso) e abstrato (valor de troca) da mercadoria, conhecida como trabalho abstrato, e é a fonte existencial da quantificação numérica para a troca, que nada mais é do que a expressão nominal da forma-valor. O valor é, pois, tempo de trabalho abstrato coagulado num ou mais objetos quaisquer denominados mercadorias, que se destinam, simultaneamente, à satisfação de necessidades humanas, mas, precipuamente, à reprodução do próprio valor no mercado.

Assim, em razão da quantificação numérica abstrata, a forma-valor, um determinado objeto destinado à satisfação de necessidades humanas, passou a ter valor de uso e valor de troca, configurando-se como mercadoria, significando que esse objeto antes de se destinar à satisfação de necessidades humanas, destina-se, como dissemos, prioritariamente, ao mercado, espaço onde se torna possível a acumulação ilimitada desse mesmo objeto – a riqueza abstrata -, objeto principal do desejo de quem produz mercadorias.

No mundo da mercadoria, a riqueza produzida é apropriada por quem a produziu, excludentemente, de modo a que "quem não trabalha não come". Apesar de tal critério ser aceito por muitos desavisados, como justo, trata-se de uma cruel forma de relação social, que pune indistintamente a todos aqueles que por motivos estranhos as suas vontades não podem participar do processo de produção. Entretanto, a negatividade social da mercadoria, tem maior profundidade do que se podia imaginar quando do seu surgimento, e para analisá-la em toda a sua dimensão se faz necessário que se dissequem todas as suas categorias constitutivas e os modos pelos quais se processam as suas negatividades endógenas e exógenas, tornando-a simultaneamente algo socialmente destrutivo e um fenômeno autodestrutivo. Desvendar o mistério pelo qual uma coisa abstrata e estranha (o valor de troca) ao objeto em si, o concreto capaz de satisfazer necessidades humanas (valor de uso), dele se apodera exercendo um domínio social negativo, para compreendermos a necessidade de sua superação, é o grande enigma a ser decifrado pelo bem de todos, coletivamente.

Valor de uso e valor de troca
Se um camponês semeia feijão em uma determina área de terra e após um determinado período de cultivo colhe 10 sacos desse cereal, e destina a metade desse alimento para o consumo de sua família e a outra metade ele destina à venda na feira da cidade mais próxima, ele estará, sem o perceber, praticando um ato capaz de explicar e tornar compreensível, de modo simples e objetivo, o que seja valor de uso e o valor de troca.

Os 05 sacos de feijão destinados ao consumo familiar, e capaz de promover o sustento alimentar de sua família, se tratam de objetos concretos, que têm apenas valor de uso, não produzindo riqueza abstrata no mundo mercantil. Entretanto, os 05 sacos destinados ao mercado na feira da cidade mais próxima e vendidos, ou seja, trocados pela mercadoria denominada equivalente geral, da qual mais adiante trataremos, tornaram-se, automaticamente, mercadoria. O resultado dessa operação de venda com correspondente aquisição do dinheiro, tornou possível a aquisição de outras mercadorias pelo camponês, tais como tecidos, equipamentos agrícolas, entre outros. Tal processo criou um valor de troca, onde objetos de diferentes qualidades e quantidades encontraram um denominador comum capaz de igualá-los numericamente, ou seja, 05 sacos de feijão, correspondeu a US$ 300,00, que por sua vez correspondeu a 05 metros de tecido A, 05 metros de tecido B, 05 arados, e 02 cabras. Podemos inferir que todos os objetos citados, transformados automaticamente em mercadorias, passaram a ter, cada um, uma determinada quantificação numérica, que somada, foi fixada em RS$ 300,00.

Assim, como num passe de mágica, aquele feijão plantado e colhido, uma matéria concreta, ganhou uma outra conotação num mundo que lhe é estranho enquanto objeto em si, configurado em uma quantificação numérica abstrata, mais que foi capaz de se materializar numa moeda (logo mais adiante abordaremos esse fenômeno dinheiro, mercadoria especial, detalhadamente), expressão de uma forma abstrata – a forma-valor. O oportunista valor de troca não pode existir separadamente do valor de uso, posto que, dele faz uso para existir, enquanto que o valor de uso independe do valor de troca para existir.

O processo ora exemplificado, parece uma decorrência natural da vida humana, onde a troca de diferentes produtos facilitou a aquisição, por todos, dos vários objetos dos quais todos necessitam. Visto assim, perece-nos um bem coletivo a troca dos objetos citados, que somente se tornou possível a partir de um critério "justo" de sua quantificação na troca, qual seja o tempo de trabalho humano médio empregado para o fabrico desses objetos mercadológicos. Entretanto, tal processo, que somente se iniciou em recente período histórico, cerca de 2.700 anos atrás, na Grécia antiga, local de suas primeiras manifestações, é ilusoriamente benéfico, posto, embute uma negatividade social intrínseca, já manifestada quando do seu surgimento pelo fato de individualizar a apropriação da produção dos bens necessários à vida coletiva, causadora de um apartheid social que acabou, progressivamente, como o sistema até então usual de partilha coletiva dos bens produzidos por todos, para chegar, no seu desenvolvimento posterior, aos mecanismos mercantis massivamente destrutivos da vida social, como veremos mais adiante. Dentre esses mecanismos destrutivos da vida social, desta-se o fenômeno pelo qual se tornou possível a acumulação segregacionista da riqueza pela forma abstrata, ou seja, pela quantificação numérica abstrata, denominada forma valor, expressa nas mercadorias, em geral, e mais facilmente manuseada pelo equivalente geral o dinheiro - mercadoria especial. A mercadoria é a célula germinal cancerígena, com a qual se processa a metástase no organismo de todas as sociedades mercantis "modernas".

O dinheiro
As trocas de mercadorias depararam-se, inicialmente, como um empecilho ao seu desenvolvimento: a diversidade dos interesses e das necessidades de aquisição das mercadorias dos vários agentes no mercado. "A" tinha trigo e necessitava de sandálias; "B" tinha sandálias e necessitava de tecido; "C" tinha tecido e necessitava de trigo. Como então se operar as trocas diretamente, de modo a que todos tivessem as suas necessidades e interesses satisfeitos? Havia que se convencionar uma determinada mercadoria, que aceita por todos, poderia servir como referência quantitativa para as trocas. Assim surgiu a mercadoria especial, inicialmente representada por uma mercadoria específica (gado, sal, etc.), para posteriormente se fixar em algo mais facilmente manuseável, os metais (ferro, prata, ouro, etc.), até evoluir para um papel impresso e, hodiernamente, se expressar num lançamento contábil bancário controlado por computador e movimentado por um simples cartão de crédito. 01 quilograma de sal corresponderia a "x" quantidade de trigo, ou "y" quantidade de feijão, e assim por diante, de modo a que tudo pudesse ser quantificado numericamente, ou valorativamente, para a troca. Na evolução desse mecanismo, ou a dessa mercadoria especial, convencionou-se chamar de a isso de – dinheiro. Tudo parecia, e ainda hoje nos parece, naturalmente benéfico para os interesses coletivos. Entretanto, mais uma vez se escondia sob esse manto de ilusórios benefícios, a negatividade intrínseca da forma-valor, expressa nas mercadorias.

O dinheiro não é um ingênuo instrumento de facilitação da vida social, mas uma expressão materializada da forma valor, sem o qual o negativo mundo mercantil não poderia se desenvolver. Trata-se, sem dúvida de uma convenção social de equivalência referencial do valor de troca, mas, evidentemente, ele não é apenas isso, como costumam conceituar, de modo incompleto, muitos manuais de economia. O dinheiro é, também e principalmente, a encarnação concreta e numericamente mensurável da abstração forma-valor, sendo, pois, a mais abstrata das mercadorias, a mercadoria das mercadorias, embora possa ser tangível (caso do papel-moeda), e enquanto convenção acreditada de representação da riqueza abstrata é a única destituída de valor de uso intrínseco. Então, o dinheiro não é um mero instrumento facilitador da vida mercantil, mas a expressão da forma valor, e se a forma-valor é negativa na sua essência constitutiva, como veremos, o dinheiro, como sua expressão material e abstrata, é a personificação desse mal em si.

Seria impossível o desenvolvimento da relação social sob a forma valor, expressa nas mercadorias, se não houvesse o dinheiro, uma vez que além de viabilizar as trocas de um modo abrangente, ele é capaz de cumprir uma função primordial na lógica mercantil que é a acumulação individual, socialmente segregacionista e excludente, e meramente numérica, da riqueza abstrata. Assim tudo pode ser mensurado pela forma-valor através do dinheiro, e acumulado sob essa forma. Alguém pode ter um milhão de uma moeda qualquer, que pode corresponder a quantidades enormes de determinadas mercadorias, sem precisar confiná-las, ou guardá-las, num determinado lugar. O sistema bancário, por exemplo, comumente não tem a maior parte do patrimônio representado por mercadorias tangíveis, preferindo acumular a mercadoria com a qual exerce o seu negócio - a espécie dinheiro. Entretanto, por ser uma convenção acreditada de representação da riqueza abstrata, não tendo valor de uso, obviamente que o dinheiro precisa da capacidade de reprodução aumentada e contínua do valor que representa, para se manter acreditada e válida. Esta é a razão que leva os países que sucumbem na guerra, com a falência do seu sistema produtor de mercadorias, ou ainda, os países que perdem competitividade na produção de mercadorias destinadas à corrida pela concorrência de mercado a terem as suas moedas reduzidas ao pó, no primeiro caso, e à perda de credibilidade e substância, no segundo caso.

Trabalho abstrato, mais-valia, lucro, reprodução do valor e propriedade
Como já analisamos antes, o critério de mensuração das mercadorias, na sua capacidade de troca por outras mercadorias de diferentes qualidades e quantidades (é óbvio que não se troca uma mercadoria por outra de idêntica qualidade e quantidade), é o tempo de esforço humano em interação com a natureza para a sua produção (de dispêndio de cérebros, nervos, músculos, sentidos, etc., humanos, como nos disse, pela primeira vez, Karl Marx). Nessa fase inicial do surgimento da forma-valor, quando se passou à produção de objetos destinados à satisfação de necessidades humanas e, concomitantemente, à troca (mensuração quantificada e qualificada) por outros objetos, tais objetos, agora transformados em mercadorias, pelo valor de uso e de troca, eram produzidos individualmente, ou familiarmente, por aqueles que os trocavam diretamente no mercado.

Nesse momento, e imperceptivelmente, passou a existir a forma-valor, representada pela mercadoria; passou a existir a forma rudimentar do dinheiro, representada pela mercadoria convencionada; e o tempo de esforço humano de produção, que passou a ter a denominação de trabalho, constituindo-se, assim, como uma categoria específica do universo mercantil. É importante esclarecer que a relação de esforço humano em interação com a natureza é condição ontológica da existência humana, mas não o é o trabalho, enquanto categoria somente possível de existir no mundo mercantil. É evidente que as pessoas envolvidas nesse processo, não se apercebiam desse universo misterioso e abstrato que se estava a inaugurar com o advento da troca em substituição à usual partilha coletiva.

Ora, com o advento da possibilidade de acumulação individual e privada da riqueza, agora passiva de ser mensurada concretamente e/ou abstratamente, o passo seguinte, mesmo que de forma imperceptivelmente e cronologicamente lenta, foi a introdução agregada e corporativa (de pequenos grupos) de tempo de esforço de produção, agora configurada como trabalho. Assim, aqueles grupos que produziam mais em menos tempo, passaram a acumular mais mercadorias para si, sem interessar o que isso representava para a comunidade, e em detrimento de toda a coletividade. Como a introdução dos metais como mensuração numérica do valor das mercadorias, surgiu como decorrência impositiva, a figura do detentor do capital, capaz de produzir sob o seu domínio individual, com a aquisição do trabalho humano de outrem, mercadorias destinadas ao mercado e, assim, acumular capital cada vez maior.

Entretanto, esse capitalista, logo verificou a existência de um problema a ser resolvido para que fosse aumentado o seu capital. Se o trabalhador recebesse o mesmo quantitativo de mercadorias que produziu no espaço desse capitalista, não poderia se operar para este último a acumulação de mercadorias ou de dinheiro, ou seja, o lucro (nova categoria do mundo mercantil) Para que esse processo se materializasse, seria necessário que o trabalhador não recebesse integralmente as mercadorias, ou o valor destas, que produziu num determinado espaço de tempo. Algo que já se processava de maneira direta no regime escravista dos sevos, mas agora, sub-repticiamente, poderia se operar de forma mais disfarçada, como a remuneração pré-fixada em dinheiro. Assim, para cada trabalhador que produzia, em uma semana de 60 horas de trabalho, 100 metros de tecidos, ele só receberia o correspondente a 50 metros. Ora, como valor é tempo de trabalho coagulado na mercadoria, esse trabalhador somente recebia 30 horas de tempo de trabalho integral de 60 horas. Assim, o capitalista se apropriava das 30 horas não remuneradas, que equivalia a 50 metros de tecido, extraindo, portanto, mais-valia do trabalhador (nova categoria do mundo mercantil).

Se todos os objetos produzidos fossem partilhados e consumidos coletivamente, não existiria nenhuma dessas categorias a que acima aludimos, começando pela própria mercadoria, que nasceu com a introdução da troca mercantil, também conhecida como escambo, criadora da forma-valor. Deve-se aqui, esclarecer, que muitas pessoas entendem, equivocadamente, que a compra e venda não é uma forma de escambo, como se fosse algo estranho ao universo mercantil. Como vimos antes, a única forma de existência da riqueza abstrata, a mercadoria, é a introdução no mercado, pela troca, do objeto capaz de satisfazer necessidades humanas. Por sua vez, a reprodução aumentada do capital, a níveis capitalistas, somente se pode operar com a extração de mais-valia, que nada mais é do que a apropriação indébita, pelo capitalista, seja ele privado ou estatal, do tempo de trabalho humano transformado em mercadoria, agora configurado como trabalho abstrato.

Podemos definir, portanto, o trabalho abstrato como aquele indiferenciado, coagulado nas mercadorias produzidas, e remunerado pelo capitalista através do mesmo critério de mercado. Como exemplo de trabalho abstrato, podemos citar a fabricação da mercadoria automóvel, que absorve uma infinidade de trabalhos abstratos indiferenciados, que vão desde a colheita da borracha nos seringais dos trópicos, até a fabricação do requintado computador de bordo, todos eles coagulados nessa mercadoria símbolo da segunda revolução industrial fordista. Por sua vez, a mais-valia é a subtração, ou apropriação indébita, pelo capitalista privado ou estatal, do tempo de trabalho abstrato, representado pela mercadoria dinheiro, também conhecida como salário (palavra originária da antiga moeda, o sal).

Podemos afirmar, portanto, que não há reprodução cumulativa e aumentada de riqueza abstrata, das mercadorias em geral, representação da forma-valor, se não houver apropriação indébita do tempo de trabalho abstrato, denominado por Karl Marx de mais-valia, e fonte do lucro, nome dado na vida mercantil ao roubo legalmente aceito do tempo de trabalho abstrato. Não é exagero em se dizer que no mundo capitalista toda a riqueza se origina do roubo, fonte de sua negatividade endógena, e que caminha para o seu colapso interno enquanto forma.

O "moderno" conceito jurídico de propriedade advém da lógica mercantil, como forma de preservação segregacionista da riqueza apropriada. Assim, a propriedade em geral e, principalmente, aquela da qual não faz uso pessoal o seu proprietário, é um grande acúmulo de mercadorias coaguladas e apropriadas indebitamente, fruto do roubo do tempo de trabalho do trabalhador (extração de mais-valia), que delas fica privado. Tal segregação social se opera tanto nos estados capitalistas liberais, como nos estados ditos socialistas ou comunistas tradicionais, politicamente fechados, todos regidos pela nefasta relação social sob a forma-valor, e sob a égide das mercadorias e de seus construtos jurídico-institucionais. A posse de um determinado bem, por quem dele faz uso, é algo concreto, útil à existência humana. Entretanto, a propriedade, conceito jurídico que se coaduna com a abstração forma-valor, e dela originário, é conceito igualmente abstrato, que tende a desaparecer com a superação necessária e inadiável da forma-valor. Da mesma forma que uma mercadoria tem duplicidade de conceitos, sendo ao mesmo tempo concreta e abstrata, o bem material, tem, também, por conseqüência, uma conceituação jurídica concreta, a posse, domínio físico, e uma outra abstrata, a propriedade, domínio legal. A propriedade é instituto jurídico derivado da forma-valor e tende a desaparecer juntamente com a sua superação histórica.

O fetichismo da mercadoria.
Foi Karl Marx, na sua obra "O capital", quem estabeleceu uma analogia entre a negatividade da vida metafísica das relações sociais sob a mercadoria com o fetichismo religioso primitivo, onde seres humanos criavam totens aos quais atribuíam poderes divinais e que a eles se submetiam, sacrificando vidas em seu louvor e como purgação de pecados. Chamou a esse fenômeno de "fetichismo da mercadoria", aspecto que é muitas vezes relegado ao segundo plano pelos marxistas tradicionais, mas que na verdade aborda um tema da mais profunda importância, qual seja o domínio que têm as relações sociais entre coisas, as mercadorias, sobre a sociedade, com a sua lógica própria, que assume proporções gigantescas na vida social, e que submete todas as ações humanas. No mundo das mercadorias não é o indivíduo o alvo da preocupação social mais a disputa que se estabelece entre as mercadorias como modo de suas sobrevivências. Os indivíduos, como os objetos que lhe satisfazem as necessidades, são meros instrumentos de viabilização do desiderato mercantil de reprodução do valor. O concreto, a satisfação das necessidades humanas, serve apenas como instrumento circunstancial do abstrato, a reprodução do valor, que rege as ações humanas ditando-lhe regras de comportamento.

Se o mercado sinaliza para o capitalista que ele deve demitir trabalhadores, sob pena de falência, ele demite, não importando a repercussão social do seu ato; se ele pode auferir lucros exorbitantes em razão de circunstâncias mercadológicas (variações de preços, não de valor, que lhe beneficiem), a ética social vai para o espaço, pois ele precisa aproveitar a oportunidade e se fortalecer perante seus concorrentes. Tudo se transforma numa guerra mercadológica insana, onde o indivíduo é o que menos conta. Mas, o caráter social abstrato da mercadoria, que tem suas próprias regras de sobrevivência, não dita normas de condutas apenas para o mercado, mas, também, para a vida institucional jurídica e administrativa estatal.

O melhor exemplo desse segundo aspecto e o direito codificado (o jus), elaborado e entendido segundo essas mesmas leis abstratas de mercado, que costumam se contrapor à realização do ideal de justiça (o fas), busca da racionalidade humana. Como poderia haver o direito de propriedade (domínio legal) se sobrepondo ao direito de posse (domínio físico de uso), se não fora a elaboração da mente humana derivada da abstração forma-valor, das mercadorias? Como poderia haver normas de proteção ao capital fictício, aquele emprestado pelas instituições financeiras, com expectativa de devolução aumentada, não fora a mecânica de reprodução do valor e de sua própria existência? Como poderia haver o Estado cobrador de impostos (riqueza abstrata personificada no dinheiro) se não existissem as atividades mercantis da qual esse mesmo Estado é dependente? A vida mercantil tem um caráter onívoro, que tudo transforma em mercadoria, sejam atividades esportivas ou musicais, literárias ou científicas, e molda o comportamento social distorcendo as melhores virtudes e impondo a selvageria de sua lógica abstrata.

Mas, apesar de sua importância, o estudo da mercadoria e do seu domínio fetichista sobre a sociedade, é tema tabu nas academias de ciências econômicas, e é sempre relegado a um segundo plano, seja por capitalistas liberais ou ortodoxos, ou por comunistas tradicionais e sociais democratas, justo pelo fato de que nenhum deles jamais propugnou a superação da mercadoria e do edifício jurídico-constitucional sob o qual se erigiu as sociedades mercantis atuais. Negar a mercadoria significa estabelecer um novo modo de relação social e desmascarar a injustiça social existente nas sociedades mercantis; significa desmascarar o roubo do tempo de trabalho abstrato sob o qual se processa toda a reprodução do capital, sem o qual este não poderia existir; significar retirar o véu da hipocrisia das instituições capitalistas jurídicas e estatais que se dizem protetoras dos direitos civis; significa acabar com a política e seus canais de doutrinação e acesso ao poder, os partidos políticos; significa acabar com a própria economia e consequentemente com a academia onde se estuda a ciência social econômica; significa acabar com o próprio poder. Significa, portanto, um amplo repensar nos nossos conceitos dos modos de relações e convivências sociais.

O fetichismo da mercadoria, conforme vimos, consubstancia-se na circunstância de que estas ganham vida metafísica que subordina as relações sociais a sua forma abstrata. Assim, é o abstrato que controla o concreto, ou seja, são as coisas que controlam as ações humanas, e não as ações humanas que controlam as coisas. Há uma inversão da vida real, onde o concreto apenas serve ao abstrato, destrutivamente, uma vez que a lógica de reprodução da riqueza abstrata se processa subtrativamente, causando o apartheid social mundial e destruindo predatoriamente as reservas naturais e o meio ambiente. Mas a lógica mercantil tende ao infinito, não comportando os limites estabelecidos pelo mercado, que é finito e concorrencial, determinando-lhe um momento histórico para a sua implosão interna, que ora atinge o seu ponto de saturação, como veremos mais adiante.

Ao fetichismo da mercadoria se acresce um outro fenômeno de assemelhado, mas ordem moral, que está culturalmente relacionado com os cânones do passado e com o significado das relações econômicas no seu nascedouro. No direito romano, do qual deriva grande parte dos códigos civis burgueses atuais, o devedor inadimplente se tornava escravo do seu credor como modo de adimplir a sua dívida. Assim, o não cumprimento de uma obrigação de natureza econômica significava uma desonra para o devedor, que sofria uma capitis diminutio da sua condição social. Nos tempos "modernos", os devedores são tratados como irresponsáveis, em alguns casos, e em outros, são tratados como pessoas de mau caráter, como se as relações econômicas tivessem uma dinâmica relacionada com o bom ou mau comportamento moral de cada indivíduo. Ora, na decadência da reprodução do valor, é cada vez mais constante o número de falências, e cada vez maior o número de inadimplentes, que assim, são cadastrados e segregados, até que recuperem a sua capacidade de compra e respeitabilidade do credito comercial. O insucesso dos indivíduos no mundo mercantil, e o não cumprimento das obrigações de crédito, evidentemente, que não pode estar relacionado com critérios de natureza moral, e a visão moralista da vida econômica se trata, apenas, de mais uma mazela impositiva dessa forma de relação social.
Queda tendencial da taxa de lucro, limite interno de expansão da forma-valor, microeletrônica, cibernética, e sistema de informação via satélite.
Foi também Karl Marx, quem melhor fundamentou a crítica da economia política, e quem concluiu que a desenvolvimento capitalista implica numa queda constante da taxa de lucro. A taxa, ou percentagem de lucro, refere-se, evidentemente, ao lucro em relação ao capital empregado, e não ao volume do lucro, que para se manter estável, necessita de investimentos crescentes aplicados na produção de mercadorias. Tal fenômeno do mundo capitalista está correlacionado diretamente com a necessidade cada vez maior do emprego de capital em tecnologia, visando à redução dos custos de produção e, consequentemente, do tempo de trabalho abstrato empregado nessa produção. O capital empregado pelo capitalista em tecnologia, ou seja, em capital fixo, representado pelos equipamentos e métodos destinados à produção de mercadorias, para fazer face à corrida concorrencial, além de provocar a queda constante da taxa de lucro, provoca, concomitantemente, resultados consideráveis na vida mercantil, e o seu desenvolvimento contínuo aponta para um momento de saturação tanto do mercado de trabalho como na reprodução do próprio valor.

Aqui se faz necessário um comentário que reputamos instrutivo. Os marxistas tradicionais sempre defenderam a justa distribuição do valor, representado pela mercadoria e pelo dinheiro. Para tanto pretendiam eliminar a figura do famigerado capitalista privado que explorava a mais-valia do pobre trabalhador. Assim, bastava que os meios de produção passassem para as mãos de um Estado "proletário", para que se processasse a justa distribuição do dinheiro, e a sociedade se encaminhasse para a justiça social. Mas, vejam bem, sem superar a relação social sob a forma valor. Ora, se supõe que os marxistas sejam seguidores de Marx, e que o próprio Marx seja seguidor dele mesmo. Pois bem, é o próprio Marx quem nos ensina (e corretamente), que para se manter o volume do lucro, faz-se necessário uma soma cada vez maior de capitais empregados nos equipamentos destinados à produção de mercadorias, em razão da queda tendencial da taxa de lucro. Se assim o é, como e quando seria possível a justa distribuição do dinheiro? Os marxistas não souberam ou não quiseram ler Marx, ou este último não soube levar adiante as suas próprias deduções. A forma-valor é um princípio cumulativo e segregacionista, que pela sua gênese constitutiva e funcionamento não comporta justa distribuição.

Tanto no primeiro momento do desenvolvimento capitalista mais significativo, na primeira revolução industrial, ocorrida na Inglaterra, na metade do século XIX, bem como no segundo momento, da revolução industrial fordista, ocorrida em meados do século XX, o avanço tecnológico aplicado à produção não causou um problema de desemprego estrutural, justo porque na medida em que as máquinas dispensavam o uso do trabalho abstrato massivo em determinados setores, surgiam outras atividades produtivas necessitando de trabalho abstrato, de modo a que havia uma compensação, até com ganhos setores determinados de oferta de trabalho abstrato. Embora houvesse oferta de emprego crescente, isso não significasse que tinha acabado a segregação social e a miséria de contingentes humanos em maior proporção e, deixasse de existir o chamado exército de desempregados, capaz de ameaçar a "estabilidade" dos que estavam trabalhando.

O aumento da massa de trabalhadores na produção de mercadorias, ou seja, da massa global de trabalho vivo, mesmo com o crescente aumento do trabalho morto, das máquinas, não produtor de valor, proporcionou o desenvolvimento capitalista e a irrigação dos construtos de sua institucionalidade (Estado e suas instituições, política, instituições privadas, etc.). A corrida tecnológica nesse período, mesmo diminuindo setorialmente o nível de emprego do trabalho abstrato, proporcionava outras oportunidades de emprego desse mesmo trabalho em outras frentes, o que compensava e "equilibrava" de modo suportável a vida social mercantil. Independentemente disso, sempre ocorreram crises econômicas graves, como a 1ª guerra mundial, de 1914/1918, e a depressão de 1929/1930, que foi o estopim da 2ª guerra mundial, que tiveram como motivação básica a famigerada disputa por mercados e por domínio militar no remanejamento da influência sobre as colônias dos países ricos.

Na terceira revolução industrial, da microeletrônica, da cibernética e do sistema de comunicação via satélite, vem ocorrendo um fenômeno previsto por Karl Marx, nos Grundrisse (rascunhos dos fundamentos), nome mais conhecido de sua obra "Fundamentos para a Crítica da Economia Política", somente dada a conhecer no início da 2ª guerra mundial, onde ele prevê o momento crítico em que o trabalho morto atingiria um nível de ascensão que representaria uma queda desproporcional do trabalho vivo, momento em que haveria a dessubstancialização da forma valor de modo insuportável para a vida social e estaria selado o seu ponto de implosão interna enquanto forma de relação social.

A introdução da produção das mercadorias da microeletrônica que criou a robotização e os minúsculos artefatos industriais, que adicionada à racionalização de procedimentos e cálculos proporcionados pelo sistema de computação, a cibernética, e ainda, pela divulgação instantânea, via internet, dos saberes em todas as áreas, principalmente, na área industrial, implicou na obsolescência substancial do trabalho abstrato na produção das mercadorias. Assim, a forma-valor não mais encontra espaços para a sua reprodução "saudável", levando à bancarrota todo o sistema produtor de mercadorias. O sinal mais próximo dessa evidência nos foi dado pela recente falência do sistema bancário que precisa vender a sua mercadoria, o dinheiro, transformado em capital fictício, na expectativa de recebê-lo de volta aumentado, e isso já não pode ocorrer e em razão de que as atividades mercantis de produção e venda de mercadorias já não mais operam suficientemente o indispensável mecanismo de reprodução da forma-valor. O resultado disso é o desemprego estrutural, a redução drástica da massa global de mais-valia, a dessubstancialização do valor, a decadência social da relação social mercantil, a desesperada e predatória atividade extrativa da natureza, o aquecimento global causado pela emissão irracional de gases na atmosfera, a falência do Estado e de todo edifício mercantil, que antes cambaleante no seu cruel e trágico itinerário fantasmagórico, agora encontra o seu ponto de saturação definitivo. A superação das relações sociais sob a forma-valor é fator imperativo para a continuidade da existência humana sobre o Planeta Terra.

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