Considerações sobre o conceito do blog

O objeto primeiro deste blogue é conceituar a natureza da crise econômica, política e social em curso, através da análise do conteúdo intrínseco da negatividade da forma valor, relação social abstrata que se estabelece e se reproduz através da mercadoria e do dinheiro (mercadoria especial e equivalente geral), suas expressões materializadas, bem como a necessidade inadiável de sua superação como instrumento de emancipação humana e contenção dos crimes ecológicos contra a humanidade e o planeta Terra.

Recomendamos a leitura do artigo "Nascimento, vida e morte da forma valor" como forma
de entendimento do conceito do blogue.

quarta-feira, 2 de julho de 2014

Comentário sobre um comentário

Comentário sobre um vídeo-comentário no youtube do Pe. Paulo Ricardo de Azevedo Junior intitulado “Manifestante, você está sendo manipulado!”





Quem tem vivência histórica na luta contra as desigualdades sociais sem cair no oportunismo que a política sempre se apressa em induzir, identifica facilmente um comentarista defensor do capitalismo. Preconceitos nossos à parte, a presunção da existência de um comentarista defensor do capitalismo começa pela questão de forma, para depois se confirmar na questão de conteúdo. Recomendado por um dileto amigo, assisti ao vídeo no you tube denominado “Manifestantes, estão manipulando você”, do site “Perresía” do Pe. Paulo Ricardo de Azevedo Junior. A imagem bem cuidada do palestrante, embecado numa impecável roupa sacerdotal (bem diferente das que usam habitualmente os sacerdotes mais próximos do povo) e a própria postura professoral, já me proporcionou a expectativa de que eu estava diante de uma pessoa conservadora, vaidosa, que age com o indispensável ritual cerimonioso de quem acha que defende verdades históricas imutáveis, e mais que isso, que se acha detentor da verdade absoluta. O próprio termo “Parresía”, que significa etimologicamente “afirmação arrojada” ou “atrevimento oratório”, já denota o caráter prepotente que costuma acompanhar presunçosos ignorantes que se acham sábios. Após a primeira e talvez preconceituosa impressão, pois afinal “o hábito não faz o monge”, eu fiz um esforço para me deter apenas no conteúdo, para não cometer uma injustiça a priori. Mas eis que o conteúdo me confirmou a primeira má impressão causada pela questão de forma.

Afirma o Pe. Paulo Ricardo que os manifestantes que hoje ocupam as ruas do Brasil (fato que ocorre em quase todo o mundo) protestando contra as mazelas sociais de que são vítimas, estão sendo manipulados pelos defensores do socialismo. Começa exemplificando que os protestos contra a corrupção com o dinheiro dos impostos, que para ele faz parte do discurso socialista, insere-se dentro da falácia socialista; que o Partido dos Trabalhadores prometeu, através do poder socialista, a melhoria das condições sociais, e que promoveu ao invés disso, a corrupção; que o socialismo propõe a redução do capital como forma de nivelamento social, para concluir, segundo ele por “dedução lógica”, que “o achatamento do capitalismo pressupõe um poder ditatorial”, e cita como exemplo a opressão e privilégios das castas dirigentes nas experiências comunistas da União Soviética e de Cuba. Assim, viva o capitalismo, um mal menor. Esse é, em síntese, o pensamento simplista do reverendo.

Os equívocos do Padre Paulo Ricardo derivam de dois aspectos: o primeiro diz respeito ao seu desconhecimento sobre a natureza negativa da economia política, comum às formas socialista e capitalista. O segundo diz respeito ao seu flagrante facciosismo político, próprio de um pensamento conservador. Tanto capitalismo como socialismo têm a sua base constitutiva no sistema produtor de mercadorias, ou seja, na relação social assentada sobre a forma valor; ambos extraem (exploram) mais-valia dos trabalhadores como forma de acumulação do capital; ambos se baseiam no lucro e na cobrança de impostos como base de sustentação de suas vidas sociais. A única diferença entre elas se dá no campo político. O capitalismo defende o desenvolvimento econômico como forma falaciosa de melhoria da participação de todos na riqueza; o socialismo defende falaciosamente a interferência estatal como forma de equilíbrio social entre trabalhadores e capitalistas, mas nenhum deles abdica da forma-valor como base de relação social; nenhum abdica da extração de mais-valia do trabalhador (pelo patrão ou pelo estado patrão); e nenhum deles abdica das garantias institucionais de sustentação sistêmica, inclusive do poder militar. Capitalistas e socialistas no poder são idênticos nas suas práticas políticas de gestão governamental, justamente porque são as mesmas as suas bases existenciais e os seus instrumentos de gestão.          

Quando o Pe. Paulo Ricardo afirma que a supressão do capitalismo pressupõe um poder ditatorial, implicitamente defendendo tal forma de produção de meios de subsistência social e suas instituições, confere a esse mesmo capitalismo uma natureza ontológica, trans-histórica, ignorando que se trata de uma forma social que é histórica, e que, por assim ser, atinge, agora, o seu limite interno de expansão e manutenção se tornando inviável. Fica evidente que o reverendo não conhece economia política, e muito menos a crítica da economia política e seus fundamentos, mas se mete a palpitar sobre esse assunto. É a inadequação histórica do modo capitalista de produção dos meios de subsistência social que agora se tornou mais intensamente anacrônico pelos seus próprios fundamentos aquilo que provoca a insatisfação social que explode em vários níveis e sob os mais variados tipos de reivindicações. As razões desse anacronismo são profundas e variadas, e agora, que se tornam mais sentidas são objetos da insatisfação popular generalizada. O móvel das manifestações sociais mundo afora não é a manipulação política dos socialistas (que são capitalistas na essência), nem dos capitalistas (ainda que liberais), e evidentemente, não é fruto da manipulação do Partido dos Trabalhadores, que atua somente no Brasil, e que hoje, reprime tais manifestações com brutal força militar. Trata-se da saturação mundial de um modelo social, estágio contra o qual não há cassetete que resolva.

As manifestações, havidas sobre os mais diversos tipos de reivindicações, têm repudiado a participação de partidos políticos, dos políticos, dos sindicatos, das entidades religiosas, das entidades da sociedade civil, etc., caracterizando-se por um sentimento de repulsa às instituições e a tudo que diga respeito aos tradicionais canais de intervenção social, ao contrário do que defende o Pe. Paulo Ricardo. É evidente, entretanto, que a eloqüente explosão das manifestações populares sem a necessária consciência e clareza sobre o móvel  original das suas dificuldades e sem saber para onde ir, oportuniza aos grupos políticos, sindicatos, corporações, e até mesmo a pessoas de pensamento conservador a tentativa de manipulação sobre tais fatos sociais. Até mesmo o alerta do Pe. Paulo Ricardo sobre manipulações de que seriam vítimas os manifestantes é uma forma de negação da validade das manifestações, e assim, é uma tentativa de manipulação às avessas, por desqualificação destas e indução à inércia e à passividade diante da opressão sistêmica. Nesse sentido converge também a grande mídia.

Em certo trecho do seu vídeo, o Pe. Paulo Ricardo afirma que “o socialismo é corrupto na sua essência!” Tal afirmação, por sua constante comparação com o capitalismo, é colocada como se este último não fosse, também, corrupto na essência. Ambas as formas políticas (capitalismo e socialismo) são corruptos na essência, não porque os seus administradores e gestores políticos eventuais o sejam (que o são, vez que são obrigados a jogarem o jogo sujo e caro da política), mas porque o próprio capital somente se acumula a partir de uma apropriação indébita de parte do valor produzido pelo trabalho abstrato. Essa é a essência corrupta de um sistema que já nasce assentado sob um critério moral reprovável.      

A falsa dicotomia entre capitalismo e socialismo, muito comum no pensamento político mais elementar, coloca a crítica social, equivocadamente, diante desses dois pólos, como se essas formas de organização social fossem antagônicas na essência (que não são), e mais que isso, como se fossem as únicas possíveis. Intervenções superficiais sobre fatos sociais feitas a partir de posturas tendenciosas como as do Pe. Paulo Ricardo, com ar de sabedoria salomônica defendendo implicitamente o modelo social capitalista, flagrantemente ultrapassado, sem um maior aprofundamento, e fazendo ilações comparativas a partir de modelos políticos igualmente ultrapassados (como foi na URSS e é, hoje, em Cuba), somente contribuem para estabelecer uma confusão na cabeça do leitor menos avisado, com se ele tivesse que escolher passivamente entre o ruim e o péssimo, e não houvesse a possibilidade de posicionamentos transcendentais, emancipacionistas, que se adequassem às novas exigências de uma sociedade que evoluiu cientificamente e que pode proporcionar aos seres humanos uma relação social prazerosa, igualitária e fecunda, tanto na forma como no conteúdo.

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