Vencer!

Dentre os animais o ser humano é o mais dependente de seu semelhante. Nenhum outro ser animal necessita de tanto tempo sob os cuidados de outrem para viver quanto os seres humanos. Tal condição nos remete a uma necessidade de solidariedade gregária. Entretanto, vivemos sob uma forma de relação social fetichista onde os seres humanos se tornaram adversários uns dos outros, donde o seu estado patológico esquizóide atual.

Num recente seriado de televisão ("Antônia" - saiba mais), apareceu uma história que se passa com quatro mulheres negras jovens, moradoras de favelas, que se aventuram no mundo mercantilizado da música como forma de tentativa de rompimento para com a barreira do gueto que a sociedade mercantil lhes impôs. Como em toda história midiática e espetacular, o "sucesso" ocorre, e a letra da música, transformada em hit de consumo rápido e fugaz, falava de cantar e vencer. O conceito de vencer aí implícito, embora contivesse um protesto próprio do ritmo "hip-hop" do gueto, implicava na idéia de ganhar dinheiro como forma de superação das dificuldades materiais dessas jovens. Implicava, necessariamente, no distanciamento dessas jovens das suas origens como algo virtuoso, como vitória pessoal individualizada, uma vez que agora viveriam no mundo dos "vitoriosos", onde a vida é pretensamente "saudável". Tudo isso embutido no conceito de "vencer"!

A competitividade da vida mercantil e da sua lógica abstrata de valorização do valor opõe os indivíduos uns aos outros, distancia-os, transforma-os em adversários na competição por cargos, salários, status social, lucro, etc., e até o esporte e a música se tornam mercadorias que disputam a hegemonia entre si. Essa competitividade é tida como alavanca do progresso e saudada como algo positivo. Na verdade, nega um princípio fundamental da existência humana: a solidariedade gregária. Sob a lógica mercantil todos os seres humanos, amesquinhados e solitários na multidão, são perdedores. Até os pretensos "vencedores".

*Artigo publicado no jornal "O Povo"